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terça-feira, 16 de junho de 2015

Tuberculose não é coisa do passado

Após a Segunda Guerra Mundial, surgiram os primeiros medicamentos para tratamento, iniciando pela estreptomicina, até a rifampicina, no fim dos anos 60, e ainda hoje protagonista no tratamento da tuberculose. Apesar dos avanços nos últimos anos, com redução de 25% na incidência e 32% na mortalidade, o Brasil está entre os 22 países de maior carga de tuberculose no mundo, com 70 mil casos novos e cerca de quatro mil mortes anuais. Doença urbana, ligada a condições de vida, sua redução no país nas últimas décadas tem sido desigual. A redução anual, de cerca de 2,5%, é muito aquém da esperada.

Com a expectativa de erradicação nos próximos 50 anos, seria necessária uma queda de 6% ao ano. No mundo, três países do Brics — China, Índia e África do Sul — concentram 60% dos casos. Identificar o sintomático respiratório, definido como a pessoa com tosse há mais de três semanas, e tratar é o mais eficiente. O tratamento, recomendado mundialmente, é composto de uma associação de fármacos de comprovada eficácia, utilizada há mais de 30 anos. Há evidências de que sua efetividade, porém, depende não só da disponibilidade de bons medicamentos, mas de fatores como adequada organização de ações, recursos humanos qualificados e tratamento humanizado. Cinquenta anos após o lançamento da rifampicina, vivemos um momentum, com a descoberta de novas moléculas e estudos clínicos para testar eficácia e redução do tempo de tratamento. Há cerca de 20 novas moléculas em diversas fases de estudo e dois novos fármacos (bedaquilina e delamanide) recentemente aprovados por órgãos regulatórios internacionais para formas multirresistentes. Deverão estar disponíveis no Brasil no próximo biênio.

Foi no início dos anos 90, com a epidemia de Aids e a alta mor talidade na associação HIVtuberculose — a mais frequente e de maior morbidade e mortalidade —, que prosperaram ações visando à redução da doença no mundo. O Banco Mundial, pelo impacto econômico da mortalidade de jovens, e a Organização Mundial da Saúde denominaram a doença emergência mundial desde 1993. O Brasi l tem sido exemplo, desde a formulação de normas para diagnóstico e tratamento elaboradas em conjunto pelo Ministério da Saúde e a comunidade acadêmica, com participação da sociedade civil, sem conflito entre medicina pública e privada. Alguns fatos merecem registro: o pioneirismo dos esquemas de tratamento encurtados, de dois anos para seis meses, permitindo o fechamento de sanatórios e o tratamento ambulatorial nos anos 80; o reconhecimento de grupos vulneráveis, em que a incidência é centenas de vezes mais alta do que na população geral, como indígenas, presidiários, pessoas com HIV e população de rua; medicamentos formulados em comprimidos de dose fixa combinada, que reduz de nove para quatro comprimidos diários; aquisição de equipamentos e insumos para diagnóstico rápido molecular; criação de centros de referência para casos complexos; e um banco de dados on-line, de alcance nacional, para vigilância epidemiológica; além de iniciativas como a Frente Parlamentar contra a Tuberculose e o aumento de orçamento de US$ 15 milhões em 2002 para US$ 85 milhões em 2014. Tudo isso compõe o arcabouço de governo, profissionais da saúde e sociedade civil.

Nesse cenário teoricamente favorável, é inadmissível o paradoxo de morrerem por ano quatro mil brasileiros de uma doença diagnosticável, tratável, virtualmente curável e com tratamento gratuito — o que nos permite, tristes, concluir que não existe mau paciente, e sim serviço de saúde ineficiente.

Margareth Dalcolmo
Pesquisadora da Fiocruz; artigo publicado em O Globo

O SUS na mira de Eduardo Cunha

por Marcelo Pellegrini — publicado 21/04/2015


Há pouco mais de dois meses na presidência da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ) se notabilizou por acelerar a tramitação de pautas polêmicas e engavetadas há anos, como a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos e terceirização de toda a cadeia produtiva. Ao mesmo tempo em que certos projetos são tratados com rapidez por Cunha, investigações contra os planos de saúde, setor à qual a atividade parlamentar do presidente da Câmara é ligada, são barradas.
A CPI dos Planos de Saúde foi proposta pelo deputado Ivan Valente (Psol-SP) no início da atual legislatura. Valente obteve todas as assinaturas necessárias, mas a instalação da comissão foi barrada por Cunha, que alegou "falta de foco". Diante do revés imposto pelo presidente da Câmara, Ivan Valente recorreu ao Supremo Tribunal Federal, que deve decidir até o final de abril se a CPI cumpre ou não todos os requisitos para ser instalada. A seu favor, Valente conta com um parecer da consultoria legislativa da Câmara Federal. O documento afirma que o pedido "atende perfeitamente todo o necessário para que se instale a CPI respectiva", pois investigará “um fato notório” e de “relevância nacional”, que "possui mais do que o número mínimo de assinaturas confirmadas".
A "relevância nacional" citada pelo parecer é baseada em dados. Os planos de saúde lideram o ranking de reclamações dos consumidores no Procon durante a última década e perderam 88% das ações movidas contra eles na Justiça, uma indicação de contumaz descumprimento de obrigações contratuais. Segundo o Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), há outras irregularidades cometidas pelas operadoras de saúde, como a baixa remuneração dos médicos, o aumento do valor dos planos de saúde para os usuários acompanhado de redução de direitos, e a presença de cláusulas abusivas nos contratos. Em meio a este cenário, os planos de saúde registraram, em 2013, lucro recorde, de 111 bilhões de reais, fruto de um faturamento que, segundo a Agência Nacional de Saúde (ANS), cresceu 197% entre 2003 e 2011 – no mesmo período, o valor pago pelos planos aos médicos teve reajuste de 64%.
Para Ivan Valente, números como esses deixam clara a necessidade de uma CPI. "É uma distorção enorme termos 50 milhões de pessoas, em um país subdesenvolvido, pagando o valor que pagam por um serviço péssimo", afirma. Valente diz não temer pressões exercidas por parlamentares financiados pelas operadoras de saúde, como ocorreu em CPI sobre o mesmo tema em 2003, mas atribui a decisão de Cunha a uma questão política. "A decisão de Cunha em barrar a instauração da CPI dos Planos de Saúde é uma decisão meramente política, uma vez que todos os requisitos para justificar uma investigação foram cumpridos", diz. Segundo o deputado paulista, além de investigar as operadoras e debater a situação da saúde, a CPI deve discutir "a influência dos planos de saúde na política".
A presença dos planos de saúde na política tem ficado cada vez mais saliente. Nas eleições de 2014, as doações eleitorais dos planos de saúde superaram em 32 vezes o valor de 2012, chegando a 54,9 milhões de reais para 131 candidatos, sendo 60 eleitos, entre eles a presidenta Dilma Rousseff (PT), três governadores, três senadores, 29 deputados federais e 24 deputados estaduais. Os grupos Amil, Unimed, Qualicorp eBradesco Saúde foram responsáveis por 95% do dinheiro ofertado em 2014. O último é um dos principais doadores de Cunha, tendo depositado 250 mil reais para o atual presidente da Câmara.
Conhecido defensor da manutenção do atual sistema de financiamento de campanha, que permite doações empresariais aos políticos, Cunha tem ação favorável aos planos, com destaque para Medida Provisória 627/2013, relatada por ele no ano passado. A MP tratava da tributação de lucros de empresas brasileiras no exterior, mas ganhou emendas estranhas a seu texto original, entre elas uma que concedia uma anistia de 2 bilhões de reais aos planos de saúde, aplicadas às operadoras pelo descumprimento de contratos com seus clientes. Aprovada na Câmara e no Senado, a emenda foi vetada por Dilma Rousseff.
Neste ano, Cunha voltou à carga a favor dos planos. Além de barrar a CPI pedida por Ivan Valente, desarquivou a PEC 451/2014, de sua autoria. O texto, que tramita em regime especial da Comissão e Constituição e Justiça da Câmara, insere "planos de assistência à saúde" como direitos dos trabalhadores, ao lado do FGTS, seguro-desemprego e licença-maternidade, por exemplo. Na prática, o texto obriga as empresas a pagarem planos de saúde privados para todos os seus empregados, o que elevaria o número de clientes das operadoras dos atuais 50 milhões para 71,5 milhões de pessoas.
No texto da proposta, Cunha justifica-se defendendo que "saúde é direito de todos", por isso, as empresas deveriam pagar pelos planos. A proposta, segundo críticos, não leva em conta que o direito à saúde universal e pública já é garantido pela Constituição e que o empregado só teria direito ao benefício uma vez que estivesse empregado.
Para a conselheira nacional de saúde, Ana Maria Costa, o efeito colateral desta proposta seria devastador para o Sistema Único de Saúde (SUS). "Com mais pessoas na saúde suplementar privada, os investimentos do Estado no SUS cairiam em detrimento dos subsídios aos planos, o que mataria aos poucos a ideia de uma saúde gratuita e universal para todos os brasileiros", afirma. Os subsídios a que Costa se refere são os benefícios dados aos planos de saúde pelo governo, que vão desde renúncias fiscais no imposto de renda até linhas de crédito do BNDES e outras isenções fiscais e tributárias. Costa defende que a PEC 451 de Eduardo Cunha é inconstitucional na medida em que "retira do Estado a proteção social de oferecer a saúde como direito gratuito e universal e o transfere para o setor privado".
O deputado Jean Wyllys (Psol-RJ) concorda com Ana Costa. Para ele, serviços básicos não deveriam visar o lucro. "Determinadas áreas não deveriam ser abertas ao mercado. O SUS tem muitos defeitos, que devem ser aprimorados, mas sem ele a população pobre ficaria incapacitada de acessar serviços de saúde", afirma. Entidades da sociedade civil como a Associação Brasileira de Saúde Coletiva, a Associação Nacional do Ministério Público de Defesa da Saúde e o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde também se manifestaram contra a PEC 451.
A assessoria da presidência da Câmara não se manifestou até o fim da reportagem.